Apresentação

As integrantes do Grupo de Pesquisa USP/CNPq “Psicopatologia, Psicanálise e Sociedade”, liderados por Tania Aiello-Vaisberg e Sueli Regina Gallo-Belluzzo, desenvolvem pesquisas qualitativas com método psicanalítico, atuam como psicólogas psicanalistas e praticam intervisão clínica, mantendo-se atentas a sofrimentos sociais determinados pelo sexismo, pelo racismo e pelo classismo, bem como por outras condições de desvantagem social, que muito frequentemente se interseccionam em nosso país.  Tais condições, cujo caráter é estrutural, originam imaginários coletivos que se articulam ao redor de crenças, vividas como certezas, que tendem a legitimar e perpetuar a ordem vigente – a menos que processos de transformação social sejam colocados em marcha.

Nos últimos anos, temos focalizado principalmente a condição de mulheres-mães, considerando que a maternidade, no capitalismo financeirizado, é vivida, tanto nas classes médias como nas subalternizadas, como sofrimento social. Levamos em conta que a divisão sexual do trabalho, iniciada no período de acumulação primitiva de capital, cercamento das terras comunais e êxodo rural consequente, continua em vigor. Entretanto, também reconhecemos que o modelo da família nuclear com dois provedores, que sempre predominou nas classes subalternizadas, alcançou as classes médias, tornando mais visível a sobrecarga do trabalho feminino (dupla jornada) e motivando a busca por arranjos mais justos e eficazes que, infelizmente, limitam-se a convocar participação masculina nas tarefas domésticas ou à adoção da maternidade reduzida (diminuição do número de filhos). Essas, entretanto, não são medidas suficientes, uma vez que o trabalho reprodutivo extrapola o cuidado infantil, envolvendo não apenas o cuidado dos idosos, doentes e das pessoas com deficiências, mas também todo o processo de renovação geracional em todos os setores da vida social. Ou seja, privatizar totalmente o trabalho reprodutivo cria uma crise de cuidado que abala a sustentabilidade do futuro.

Nosso trabalho é realizado a partir da psicologia psicanalítica concreta, abordagem psicanalítica relacional, inaugurada por José Bleger, que nos mantém atentas para a noção de que o acontecer vincular humano transcorre tanto em contextos microssociais, como a família, o ambiente laboral e a comunidade, como em contextos macrossociais que, no caso da sociedade brasileira, estruturam-se segundo os delineamentos que o capitalismo patriarcal assume nos países do Sul global. Situar corretamente o objeto de estudo compartilhado por todas as ciências humanas, a conduta concreta dos seres humanos, fenômeno inerentemente complexo que cada ciência recorta e aborda desde uma perspectiva teórico-metodológica específica, é o primeiro passo a ser observado por aqueles que se dedicam à produção de conhecimento.

Visão do Percurso

O Grupo de Pesquisa USP/CNPq “Psicopatologia, Psicanálise e Sociedade”, proposto e criado em 1992, pela Professora Tania Aiello-Vaisberg, seguiu uma trajetória que indica a preservação de uma fidelidade temática e metodológica ao longo dos anos. A fidelidade temática confere centralidade ao problema do sofrimento humano, como experiência vivida. A fidelidade metodológica consiste na persistência no uso do método psicanalítico, operado, na clínica e na pesquisa, à luz da psicologia psicanalítica concreta inaugurada por José Bleger. Essas duas fidelidades nos conduziram a tomar D. W. Winnicott como interlocutor privilegiado, a partir de uma leitura crítica blegeriana que busca depura-lo de elementos conservadores cujo uso ideológico prejudicaria uma boa utilização de algumas visões altamente significativas.

Ao longo do percurso, temos desenvolvido dois modos diferentes, mas convergentes, de abordagem do sofrimento. Uma primeira vertente, vinculando-se mais diretamente à prática clínica, articula-se ao redor do projeto “Potencialidade Mutativa de Enquadres Diferentes”. A outra vertente, vincula-se mais diretamente ao estudo de imaginários coletivos, que são conjuntos de crenças, nem sempre conscientes, por meio das quais modos de estruturação da vida social são assimilados, seja para ensejar condutas reprodutoras ou conservadoras.

“Ser e Fazer” e a  Potencialidade Mutativa de Enquadres Diferenciados

O projeto de pesquisa “Potencialidade Mutativa de Enquadres Diferenciados” foi motivado pelo acompanhamento, realizado durante e após a pesquisa de doutorado da Professora Tania Aiello-Vaisberg, dos rumos da reforma psiquiátrica brasileira. Esse acompanhamento conduziu à percepção de que os psicólogos poderiam contribuir mais decisivamente, na luta antimanicomial, se seus conhecimentos clínicos específicos fossem melhor aproveitados. Isso não impediria sua participação em equipes com profissionais de diferentes formações, nem a coordenação de grupos de atendimento com enfermeiras, assistentes sociais e outros profissionais, mas certamente permitiria a oferta de atendimentos efetivamente psicoterapêuticos o que, nos primeiros tempos, não ocorria de modo suficiente, em função do modelo psicossocial adotado.

Assim, pensamos numa forma de criar um enquadre clínico com características que tanto facilitassem sua implantação na saúde mental pública como permitissem a realização de um trabalho clínico rigorosamente assentado na psicologia psicanalítica concreta articulada com a contribuição winnicottiana. Para tanto, o primeiro passo seria o estabelecimento de um serviço no próprio Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Desse modo, os atendimentos ali realizados teriam sua potencialidade mutativa, ou eficácia clínica, cuidadosamente aferidas. 

Desse modo, foi criado, em 1997, um serviço de atendimento à comunidade, denominado “Ser e Fazer”: Oficinas Psicoterapêuticas de Criação, que funcionou durante 18 anos. Nele foram realizadas pesquisas que foram publicadas sob forma de mestrados, doutorados e artigos científicos, que indicaram sua potencialidade mutativa bem como sua versatilidade, na medida em que foram obtidos benefícios clínicos relevantes, não apenas no que diz respeito aos transtornos mentais como também ao atendimento psicológico de doentes orgânicos e outras condições de sofrimento menos severas.  Assim, logo percebemos que não criamos apenas um enquadre diferenciado, mas um verdadeiro estilo clínico, o estilo clínico “Ser e Fazer”, passível de ser utilizado em vários enquadres, tais como psicoterapia individual, psicoterapia de casal, psicoterapia de família, consultas terapêuticas coletivas, consultorias terapêuticas, acompanhamento terapêutico e oficinas para desenvolvimento de capacidades.

Iniciando seu funcionamento em 1997, quando o Grupo de Pesquisa já contava com 5 anos de existência, o serviço “Ser e Fazer”: Oficinas Psicoterapêuticas de Criação contava, na ocasião, não apenas com a professora Tania Aiello-Vaisberg, sua proponente, mas também com o apoio de um grupo de alunos e ex-alunos que se concentrava ao seu redor na realização de reuniões de estudo e supervisão. Esse grupo gestou a proposta coletivamente, valendo destacar, por sua especial dedicação a esse projeto, Fabiana Follador Ambrosio, Haroldo Sato e Tania Mara Marques Granato. Essas três pessoas formaram, desde o início, e durante muitos anos, o núcleo sustentador do serviço, com suas respectivas propostas:  Oficina de Arte do Papel, Oficina de Arranjos Florais e Oficina Ser e Criar, destinada ao atendimento de gestantes e puérperas.

A Professora Tania Aiello-Vaisberg se incumbia de supervisionar todos os atendimentos realizados nas oficinas psicoterapêuticas de criação, bem como de orientar as pesquisas de pós-graduação que derivavam de estudos sobre a potencialidade mutativa do estilo clínico “Ser e Fazer”.  Além de manter sua própria oficina, Fabiana Follador Ambrosio se  encarregou, durante os 18 anos em que o serviço esteve ativo, de variadas funções ligadas à organização geral dos atendimentos e de vários eventos, além de cuidar do relacionamento do próprio serviço com os funcionários administrativos do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, obtendo um apoio fundamental dessa parcela tão importante da comunidade acadêmica. Finalmente, contamos também, nas fases iniciais do serviço, com contribuições das funcionárias técnicas de nível superior, a psicóloga Maria Christina Lousada Machado e a assistente social Selene Thomas Passos. A partir de 2004, com a aposentadoria da Profa. Tania Aiello-Vaisberg, a “Ser e Fazer”: Oficinas Psicoterapêuticas de Criação inseriu-se institucionalmente, no Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social coordenado pela Profa. Livre Docente Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo, que sempre facilitou maximamente o desenvolvimento de nossas atividades.

Ao primeiro grupo de “oficineiros” vieram se juntar muitos outros colaboradores, que trouxeram contribuições fundamentais: Vera Lucia Mencarelli, Christiane Isabelle Couve de Murville Camps, Ligia Masagão Vitalli, Sabrina Giorgio,  Marisa Minhoto, Adriana Micelli, Yara Bastos Correa, Andrea Arruda Botelho-Borges e outros – que são devidamente apresentados na aba Ser e Fazer, na parte destinada às Oficinas e Oficineiros.

Imaginários Coletivos, Experiência Vivida e Sofrimentos Sociais

A segunda vertente a partir da qual temos abordado a questão do sofrimento humano, veio se desenvolvendo paulatinamente, à medida que percebíamos, na prática clínica, que a abordagem psicanalítica, que congrega variados referenciais teóricos, raramente considerava os contextos macrossociais nos quais transcorre o acontecer humano, limitando-se a pensar nos efeitos do contexto microssocial familiar na eclosão do sofrimento psíquico. Ora, é exatamente na superação desse limite que a psicologia psicanalítica concreta se diferencia das demais abordagens, afirmando-se, desse modo, como especialmente dotada para a compreensão de como as condições estruturais do patriarcado capitalista, colonial, racista, homo e transfóbico afetam profundamente a experiência vivida por pessoalidades coletivas e individuais. Tal afetação se dá através dos imaginários coletivos que se articulam ao redor de crenças vividas como certezas e verdades que legitimam dominação e exploração de pessoas.

Começamos nosso trabalho investigativo estudando imaginários sobre loucos e/ou doentes mentais no contexto da reforma psiquiátrica. Pouco a pouco viemos abordando outras figuras sociais discriminadas e hostilizadas, o que nos permitiu compreender a atribuição das causas dos transtornos à família como um verdadeiro sintoma de uma crença altamente prevalente na sociedade: a de que  família – e mais precisamente – a mãe, seriam os responsáveis pelas dificuldades das pessoas, sejam essas o não se esforçar o suficiente para vencer na vida, mesmo pertencendo a camadas subalternizadas da população ou sendo racialmente discriminado, ou o sentir-se atraído por pessoas do mesmo sexo ou ainda o ser uma mulher insatisfeita com as condições atuais da vida feminina.

A nosso ver, a percepção de que os sofrimentos sociais, derivados de imaginários coletivos que propagam, como normais e imutáveis, condições estruturais vigentes na sociedade atual, modifica profundamente a prática psicoterapêutica, em todo e qualquer enquadre. O reconhecimento de que determinações sociais geram padecimentos e transtornos exige uma escuta muito diversa daquela que se habituou ao modelo da tragédia edipiana, sob cuja luz a pessoa se descobre autora dos atos que se encontram na origem do próprio sofrer. O novo modo de escutar terapêutico tampouco pode se resumir a inverter o antigo modelo, tratando os pacientes como vítimas de suas infâncias, povoadas por mães não suficientemente boas, ou de forças que, em última instância, emanam do chamado mercado, mas facilitar um processo de conquista, pelo paciente, de uma visão mais clara da realidade social enquanto favorece o amadurecimento emocional que pode empoderar o indivíduo na luta por uma sociedade mais justa, igualitária e democrática.

Nossas pesquisas sobre imaginários coletivos produzem conhecimentos que podem ser úteis na clínica, em vertentes psicoterapêuticas ou psicoprofiláticas, bem como subsídios para discussões no âmbito de movimentos sociais e da sociedade civil. Aqui um esclarecimento fundamental deve ser feito: contrariamente ao que muitos acreditam, o método psicanalítico demanda a suspensão de apegos a conhecimentos, crenças e ideologias, mas não que o profissional adote uma postura neutra. Assim, defendemos, coerentemente, que o profissional assuma um posicionamento ético-político maximamente firme e amadurecido que, contudo, não seja dogmático a ponto de impedir o desapego momentâneo exigido pela prática da atenção flutuante e da associação livre de ideias.